Meus poemas e poesias favoritos de Fernando Pessoa
parte 2
Anniversario
(13-6-1930)*
Álvaro
de Campos
No
tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu
era feliz e ninguem estava morto.
Na
casa antiga, até eu fazer annos era uma tradição de ha séculos,
E
a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião
qualquer.
No
tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu
tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De
ser inteligente para entre a familia,
E
de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando
vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando
vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim,
o que fui de supposto a mim-mesmo,
O
que fui de coração e parentesco,
O
que fui de serões de meia-provincia,
O
que fui de amarem-me e eu ser menino,
O
que fui – ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A
que distancia!...
(Nem
o echo...)**
O
tempo em que festejavam o dia dos meus annos!
O
que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo
grelado nas paredes...
O
que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravez das minhas
lágrimas),
O
que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É
terem morrido todos,
É
estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um phosphoro frio...
No
tempo em que festejavam o dia dos meus annos...
Que
meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo
physico da alma de se encontrar alli outra vez,
Por
uma viagem metaphysica e carnal,
Com
uma dualidade de eu para mim...
Comer
o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo
tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que ha aqui...
A
mesa posta com mais logares, com melhores desenhos na louça, com
mais copos,
O
aparador com muitas coisas – doces, fructas, o resto na sombra
debaixo
do alçado –,
As
tias velhas, os primos differentes, e tudo era por minha causa,
No
tempo em que festejavam o dia dos meus annos...
Pára,
meu coração!
Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó
meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje
já não faço annos.
Duro.
Somam-se-me
dias.
Serei
velho quando o fôr.
Mais
nada.
Raiva
de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O
tempo em que festejavam o dia dos meus annos!...
15
de Outubro de 1929
(Presença,
27, Lisboa, Junho-Julho, 1930)
*Data
real do poema, a do aniversário de Pessoa (a fictícia, no fim,
corresponde ao aniversário de Campos), aposta no testemunho ms.
70-49 a 51)
**Na
Presença, o que parece ser gralha: «acho»
Teresa
Rita Lopes, Álvaro de Campos - Livro de Versos. (Edição Crítica).
Lisboa, Editorial Estampa, 3ª ed., 1997
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